Sistemas de Reputação Digital – Desafios de Desenho

Publicado em 20 de abril de 2021

Você provavelmente já solicitou um motorista particular pelo Uber para se deslocar na sua cidade. Antes de aceitar o motorista indicado, você observou uma estatística sobre a performance desse motorista – a média dos ratings do histórico de corridas ou comentários de outros passageiros.

Ao fim da viagem, você foi convidado a avaliar também o motorista, auxiliando futuros usuários – e a própria empresa – a inferir a qualidade de tal motorista. A mesma interação entre usuários e provedores de serviço ocorre quando você pede comida pelo aplicativo Ifood ou quando compra produtos no Mercado Livre, na Amazon ou no Facebook Marketplace.

É até possível checar reviews sobre médicos antes de agendar uma consulta (Doctoralia); avaliar feedback de mecânicos antes de definir quem consertará seu carro (Yelp) ou analisar reviews de alunos antes de escolher fazer cursos com um determinado professor (Rate My Professors). 

Vivemos em um mundo de reputação mediada por plataformas digitais. E é a confiança no bom funcionamento de sistemas de reputação digital que permite a interação econômica entre pessoas que não se conhecem.

O desenho de mecanismos digitais de reputação é algo complexo, já que requer o provimento dos incentivos corretos para que (1) compradores deem feedbacks honestos e precisos; (2) vendedores ajam corretamente quando contratados; (3) a imensa quantidade de informações seja agregada de forma transparente em estatísticas simples. Atingir e alinhar esses objetivos não é trivial. 

Vamos pensar um pouco sobre o primeiro objetivo. A informação gerada por um feedback é como um bem público, já que, caso honesto e preciso, permite que futuros usuários estejam mais informados antes de decidir. Mas dar feedback requer alguma atenção; alguns minutos dispendidos – em suma, é custoso.

É de se esperar que alguns usuários queiram aproveitar o valor informacional do feedback sem incorrer no custo de prover feedback. Ainda, é de se esperar que os usuários queiram prover feedback apenas quando determinado serviço destoe significativamente do esperado.

Nesse caso, sem nenhuma intervenção da plataforma, os reviews públicos de determinado provedor estarão negativamente visados. Um pequeno deslize – um único envio de um produto com avaria pelo Mercado Livre, por exemplo – pode ser suficiente para condenar o provedor ao ostracismo.

A plataforma precisa incentivar usuários a internalizar a externalidade informacional que ele gera ao dar feedback sempre, ao mesmo tempo em que precisa considerar que ofuscar alguns reviews antigos pode ser benéfico tanto para usuários quanto para provedores.  

Há ainda o problema de cold-start. Já compreendemos que usuários se beneficiam dos feedbacks passados e provedores veteranos sentem-se motivados a manter um histórico de boa reputação. Mas por que interagir com compradores recém adicionados à plataforma?

Afinal, muito pouco se sabe sobre eles. Entretanto, se usuários não recorrem aos serviços dos novatos, não há geração de conteúdo informacional e futuros usuários têm a mesma informação sobre os provedores entrantes que os usuários passados. A falta de incentivos de experimentar novos provedores inviabiliza a possibilidade desses novos provedores se revelarem como bons profissionais.  

O Yelp – plataforma de avaliação de estabelecimentos comerciais – tentou contornar os problemas de avaliações negativamente visadas e cold-start remunerando usuários que davam reviews frequentes e frequentavam estabelecimentos pouco avaliados.

Tais usuários recebiam um selo que os destacava dos demais usuários e motivava estabelecimentos a tratá-los com especial capricho. O tiro saiu pela culatra. Esses usuários de elite trocavam favores desproporcionais em restaurantes por reviews positivas e ameaçam com reviews negativas aqueles que recusavam conceder o tratamento diferenciado.

Como consequência, o valor informacional do feedback dos usuários de elite foi comprometido. 

No cômputo do feedback score dos vendedores do Ebay – plataforma de compras e leilões on-line, nem todo o histórico de feedbacks entra na conta, ainda que um usuário mais cauteloso possa vê-lo se pesquisar mais profundamente.

Esse ofuscamento do histórico serve para reduzir a penalidade que alguns reviews ruins podem acarretar sobre um bom vendedor. Outras plataformas agregam ratings em uma média visível aos usuários e disponibilizam comentários mais recentes, mas não revelam o número de avaliações de provedor até o momento.

Essa medida dificulta a discriminação entre provedores novatos e antigos e suaviza o problema de cold-start. 

É importante que essas políticas de limitação informacional sejam de conhecimento comum. Do contrário, perde-se confiança no sistema. Uma plataforma americana de contratação de serviços domésticos – Angie’s list, já esteve envolvida em uma polêmica de manipulação informacional pouco transparente.

Em certas situações, ela recomendava profissionais de companhias que pagavam divulgação na plataforma e não necessariamente eram os mais bem avaliados. Esse  procedimento não era dito aos clientes. A companhia foi processada e perdeu muitos usuários após o procedimento tornar-se público. 

Vamos pensar agora sobre o segundo objetivo. Sistemas de reputação digital em serviços de saúde são exemplares do seguinte problema. O médico é por definição um especialista: após a consulta, ele tem mais informações do que o próprio paciente sobre o problema para qual o paciente o contratou.

Isso significa que, ao observar o tratamento oferecido pelo médico, o paciente não consegue inferir perfeitamente se o médico ofereceu o serviço mais adequado.  

Por um lado, é possível que um tratamento mais básico (e barato) que o indicado pudesse ter a mesma eficácia, mas o médico não o ofereça por medo de ser avaliado como negligente. Por outro lado, ele pode oferecer um tratamento mais barato que o realmente adequado por temer má avaliação.

Ainda que o paciente esteja disposto a dar reviews honestas, pode haver distorção nos  incentivos dos médicos para agir corretamente. Mas se os pacientes compreendem que as reviews não necessariamente refletem a qualidade do médico, eles veem menos valor informacional nos feedbacks passados – portanto veem menos valor no uso da plataforma como forma de escolher os melhores médicos. 

Sistemas de reputação digital mal desenhados podem atrapalhar a interação entre usuários e provedores, quando os provedores têm incentivos demais em serem bem avaliados,  independentemente do que serviço mais adequado ao usuário. Tanto distorcem o comportamento dos provedores quanto reduzem o valor informacional dos feedbacks.

Não é surpreendente que mecanismo de reputação digital tenham encontrado resistência da comunidade médica. Nos Estados Unidos, por exemplo, já existiram firmas especializadas em desenhar contratos anti-ratings, que obrigam pacientes a não avaliar médicos em plataformas.

Na França, outro exemplo, já se chegou a proibir que estudantes avaliem professores em plataformas como a Rate My Professors. 

Sistemas de reputação digital funcionam como um boca-a-boca online entre consumidores. Eles permitem interações econômicas entre agentes anônimos e distantes que outrora não seriam possíveis. Mas esses sistemas precisam resolver desafios complexos.

Especificamente, precisam prover incentivos para que usuários deem feedbacks honestos e precisos; provedores ajam corretamente quando contratados e a imensa quantidade de informações seja estrategicamente agregada, zelando também pela transparência e simplicidade. O papel da plataforma em intermediar cautelosamente a informação é crucial.

Publicado por Caio Lorecchio

Caio Lorecchio é professor de Teoria dos Jogos no Insper e doutorando na Escola de Economia de São Paulo (FGV). Escreve e pesquisa sobre economia da informação, incluindo desenho de mecanismos de reputação.


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